Profanação contra a Páscoa

Os preceitos cristãos são implementados na nossa sociedade com a marca abrasadora  da dor, da ferida e do castigo. Meu corpo como o de bilhões de pessoas carregam os vestígios de 2017 anos de torturas, genocídios e chacinas que continuam a acontecer e comandar grandes multidões. Somos corpos que vivem nossas existências e nossos desejos interpretados sob o signo do pecado e da culpa, fadados ao inferno.

Acredito ser mais que pertinente publicar um pequeno artigo do León Ferrari (1920-2013) que descobri  que não está disponível na internet. transcrevo aqui:

 

Sobre a dor dos outros

A dor dos outros ocupa um espaço amplo no cristianismo, no qual convivem a dor injusta do sofrimento de Jesus na Cruz e a dor justa dos ateus nos suplícios e extermínios relatados no Antigo Testamento e naqueles anunciados por Jesus no Novo Testamento: o diluvio, Sodoma, as pragas do Egito, a primeira invasão de Canaã, o Apocalipse, o Juízo Final, o inferno.

Em meio a esses dois conjuntos de práticas religiosas, prossegue a vida da humanidade, que por sua vez comete um terceiro tipo de violência: guerras, napalm, bombas atômicas, racismo.

Essas três manifestações das condutas humanas e divina deram origem a numerosas imagens. Aquelas que correspondem aos feitos relatados nos Testamentos – quadros, afrescos, esculturas – afiançaram o poder da Igreja e colaboraram na apresentação das violências bíblicas como sendo o merecido castigo ao diferente. Essas obras mostram uma singular diligência dos seus criadores em ilustrar as ideias dos deuses: Schnorr retrata o terror das mulheres e seus filhos diante do dilúvio; Doré, a morte dos primogênitos ; Giotto, um casa adúltero presos pelos genitais; Fra Angelico e Botticelli, Satanás comendo gente; Bosch, Bruegel Luca Signorelli, Dürer, Michelangelo e Rafael, as torturas que os outrora torturados anunciaram que nós, os infiéis, sofreríamos. Crédulos e ateus se abstêm de julgar a ética daquelas obras. Os crédulos porque aceitam que o diferente seja castigado. Os incrédulos porque, apaixonados pela estética, ignoram seus significados: se um quadro está bem pintado, não importa que exalte um crime. No mundo intelectual, mesmo entre ateus e pensadores livres, é comum a indiferença diante da intenção dessas imagens.  

Susan Sontag, em seu documentado estudo sobre a violência contemporânea, concorda com aquela indiferença diante das violências cristãs e, em algumas páginas, diante das ideias dos crentes.

Acredita que o sofrimento que a população civil padece à mercê de um exército vitorioso seja um tema “essencialmente secular, que surge no século XVII” (p.39). Segundo a Bíblia, trata-se de um tema ainda mais antigo e não apenas secular: o livro mais lido fala das torturas e mortes que Davi e Moisés impuseram à população civil, habitantes das terras invadidas, milênios antes do século XVI. (Doré mostra Davi em plena tarefa.)

Quando cita Bataille, afirma que se trata de

uma visão de sofrimento, da dor dos outros, que está enraizada no pensamento religioso e vincula a dor ao sacrifício o sacrifício à exaltação – uma visão que não podia ser mais alheia à sensibilidade moderna, que encara o sofrimento como um erro, um acidente ou um crime. Algo a ser corrigido (p.83)

Da leitura dos Testamentos se deduz que o principal uso da dor no cristianismo é o castigo: o Pai nos castiga com a dor pela desobediência de Eva e o Filho nos ameaça com mais dores se não o amamos. A sensibilidade moderna que considera o sofrimento, todos os sofrimentos ocasionados por nossos semelhantes, um crime, é aquela que não acredita na Bíblia: basta ler o catecismo oficial do Vaticano – que anuncia torturas sobre a alma, quando morremos, e sobre o corpo ressuscitado por Cristo no momento do Juízo Final – ou as pregações dos evangélicos, para conhecer o pensamento religioso, ou, pelo menos, essa linha de raciocínio.

De Jacques Callot, cujas imagens mostram que se compadece de quem sofre, diz que tem “sensibilidade humanista cristã” (p.40). Entre outros episódios (Inquisição, Conquista, Cruzadas, Processo, governo Bush), a sensibilidade humanista cristã encorajou durante milênios o antissemitismo ocidental, originado em grande parte no Novo Testamento com as ofensas de Jesus aos judeus, que não acreditavam na sua divindade. Aliadas a elas estão acusações de serem os judeus os autores de sua morte: acusação repetida durante dois mil anos em capelas, basílicas e escolas. O fruto dessas pregações foi o assassinato de milhões de judeus por Hitler (que afirma, em Minha luta: “Estou convencido de que ao me defender dos judeus estou lutando pela obra do Supremo Criador”), em um país composto de 94% de cristãos. As fotografias dos mortos nos campos de concentração nazista mencionados por Sontag são parecidas com os quadros de extermínios bíblicos, porém com uma diferença: os artistas de Hitler não pintaram afrescos retratando seus crimes para enfeitar salões ou para intimidar; por outro lado, os da Igreja nos mostram em suas lindas catedrais um Auschwitz imortal e bem pintado, para nos obrigar a amar os deuses que a administram.

Tenho grande respeito por Susan Sontag, por seus inteligentes ensaios e por sua conduta cívica. Não compreendo sua benevolência diante do cristianismo, cuja mais recente atitude é a invasão do Iraque, protagonizada por um país dirigido pela direita evangélica e tão cristão como aquele dos nazistas.

Artigo publicado no suplemento “Ñ” do Jornal Carín, em 21 de fevereiro de 2004.

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La civilización occidental y cristiana

León Ferrari, 1965, plástico, óleo e gesso. 200x120x60cm

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Juicio Final 

León Ferrari, 1994, papel impresso e excremento de ave, 150 x 120 x 12 cm.

[no title] 2001, reproduced 2007 by Léon Ferrari born 1920

Renovação

León Ferrari, 2001, papel recortado e colado sobre papel impresso, 43 x 29 cm.

Uma viagem pela iconologia:

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O juízo final e a missa de São Gregório

Mestre da família Artés,1500-1520, óleo sobre painel, 249×170 cm.

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O Juízo Final

Hieronymus Bosch (1450-1516) , circa 1482, Óleo sobre tábua, 163,7 cm  × 242 cm.

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Detalhe do Juízo Final

Fra Angelico (1400-circa 1455), tempera sobre madeira, 105×210 cm.

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Detalhe do Juízo Final

Giotto (1266-1337), 1306, afresco.

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Ilustração do Canto xIx da Divina Comédia  por William Blake (1757-1827).

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A expulsão de Adão e Eva do Paraíso.

Masaccio (1401 – 1428), c. 1424-27, afresco.

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Juízo Final

Michelangelo (1475-1564) , 1533-1541, afresco.

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O mundo destruído pela água

Doré (1832-1883), 1866, ilustração

Inferno

Yael Bartana (1970-), 2013, vídeo, 18’7”

OT-034-med

 

A praga da escuridão

Doré (1832-1883), 1866, ilustração

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Árvore de Sangue – Fogo que consome porcos

Thiago Martins de Melo(1981-), 2013, óleo sobre tela, 390 x 360 cm.

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Resurreição de Cristo

Rafael (1483-1520) , 1499-1502, óleo sobre madeira, 95,5 x 82,2 cm

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Ecce Homo ou Pilatos apresenta Cristo à multidão

Jacopo Tintoretto(1518 -1594) , 1545-1547, óleo sobre tela, 118×153,5 cm

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Purificação do templo

El Greco (1541–1614), 1570-1575, óleo sobre tela, 116,8 x 149,9cm.

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Cristo expulsando os cambistas do templo

Rembrandt (1606-1669), 1635, água-forte, 136 x 169 mm.

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Os réprobos lançados ao inferno

Luca Sgnorelli (1445-1523) 1499-1500, afresco.

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Punição dos rebeldes

Botticelli (1445-1510), 1481- 1482, afresco, 348,5 x 558 cm

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O martírio dos dez mil

Albrecht Dürer (1471 – 1528), 1508, Técnica mista sobre tela, 99 x 87 cm.

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O martírio de Santa Lucia

Rubens (1577 – 1640), 1620-1621, óleo sobre madeira, 29 x 43 cm.

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Madalena penitente
Artemisia Gentileschi (1593–1653), 1615-1616 ou 1620-1625, olho sobre tela, 146.5 × 108 cm.

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Madalena penitente

Caravaggio  (1571-1610)., 1596, óleo sobre tela, 122,5 x 98,5 cm

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A queda dos anjos rebeldes
Brueghel (1526/1530–1569), 1562, óleo sobre madeira, 117 x 162.

Nada levarei quando morrer, Aqueles que me devem cobrarei no Inferno

Miguel Rio Branco (1946-), 1985, filme 16mm transferido para DVD, som, 20’